O sábado penúltimo levantou azul. O Sol impunha-se soberano no céu. O primeiro debate do ciclo “As Redes e as Ruas” do Dia Internacional da Juventude estava marcado para as quatro da tarde, com os convidados Graziela Kunsch (artista, TarifaZero.org e Movimento Passe Livre), Pablo Capilé (Fora do Eixo e Mídia Ninja), Pablo Ortellado (USP) e André Bueno (Exposição Autonomídia). O lugar era o CCJ, localizado na Vila Nova Cachoeirinha – SP.
O dia ensolarado convidava ao ar livre de tal forma que me meter em um metrô e um ônibus por mais de uma hora e meia não me animaram. Botei um shorts confortável, prendi firme a mochila e trepei na bicicleta. Nunca havia me aventurado por aquelas bandas de modo que tentei desenhar o melhor percurso pelo google maps antes de partir.
Foi um desastre. Enfiei-me em avenidas, viadutos, errei a entrada, voltei, perguntei para um frentista, errei novamente. Entre saídas do selim para empurrar a bike e voltas a ele, observava como São Paulo era projetada para a cultura do carro. Gigantescas vias de duas, três e até quatro faixas intercortadas por viadutos expeliam toneladas de metal motorizado em um fluxo contínuo. Era preciso realmente se jogar em alguns trechos para conseguir atravessar uma rua ou ponte. Nas regiões mais residenciais, a configuração das ruas era quase cômica, a quantidade de entroncamentos e bifurcações te fazia ficar na mira de um farol praticamente todo o instante. Pensava sobre a proposta do Passe Livre, de como mais pessoas andando em ônibus forçaria a melhora do serviço, pois aumentaria a demanda e talvez desafogasse o trânsito.
Cheguei no CCJ encharcado de suor e ridiculamente atrasado. Uma grande perda, Pablo estava concluindo sua fala, gostaria muito de tê-lo ouvido. Aliás, gostaria de deixar registrado meu espanto pelo CCJ, em minha telha ingênua, havia erguido na minha cuca um local não mais do que uma casa, como essas escolas de inglês pequenas. Ao me deparar com o enorme complexo me senti bobo, e bem ao mesmo tempo. Paredes grafitadas, grandes espaços para encontros, lugares para shows, estacionamento de bicicletas. Tudo parecia novo e limpo.
Apressei-me logo a sentar e puxar o caderno de rabiscos. Graziela, a integrante do Passe Livre tomou o microfone. Era uma moça no seus 35. Começou contando que havia pensado em seu discurso enquanto lavava a louça, indicou com os olhos uma cadeira vazia em seu lado direito e disse algo, se me lembro bem, mais ou menos assim “… ele não pôde vir, mas nós deixamos essa cadeira aqui” Pablo Ortellado completou “…deve estar lavando a louça dele”. Então percebi que havia realmente uma cadeira vazia entre ela e o Pablo. Capilé não compareceria. “Perdi a chance de ouvi-lo” pensei com minhas canetas.
Graziela tinha uma fala calma e coesa, porém muito emotiva. Não era um discurso sentimental, mas havia a intensão de trazer um sentimento para suas palavras, uma sinceridade, mais do que defender uma tese, preocupava-se em passar uma experiência. Chamou a atenção para a importância da discussão vir para o plano real, para o encontro físico, pro “olho no olho”. De cara me tocou bastante.
Contou-nos de sua residência pela Casco, uma instituição de arte em Utrecht, Holanda. A Casco idealizou a The Grand Domestic Revolution, um projeto artístico inspirado no livro homônimo de Dolores Hayden que contou com a realização de vivências em espaços coletivos e exposições . O projeto foi realizado em um apartamento por dois anos. Graziela relata em seu blog como, no decorrer deste espaço de tempo, a casa idealizada pela Casco foi se acumulando de coisas, móveis, peças de arte (produzidas pelos artistas residentes) e toda sorte de entulhos deixadas pelos moradores. Como um contraponto a proposta, ela começou uma série de atitudes que denominou de “não ações”, Graziela começou abrindo as janelas, limpando os cômodos e retirando a sujeira.
André Bueno, curador da exposição “Autonomídia” que acontecia dentro do espaço do CCJ explanou sobre sua realização. Apontou para uma tela que exibia cenas das manifestações que ocorriam nas ruas do país. Parecia preocupado em entender o papel do vídeo e da fotografia nessa nova forma de se fazer revolução, lembrei-me da conhecida frase “A revolução não será televisionada” e como ela perdia seu sentido, talvez por pertencer a um conjunto de paradigmas de outras épocas, desmantelados pelo surgimento da internet.
Terminada sua fala, um rapaz alto e barbudo ganhou a mesa onde os debatedores estavam sentados, seu nome era Felipe, era um dos integrante do Fora do Eixo, que falaria no lugar do sumido Capilé. E logo começou de fato, a por ela em prática. Anotava tudo que podia, de repente comecei a perceber que o mesmo jeito dele falar era o jeito que ouvia do boca do Capilé no Roda Viva. A mesma intonação na voz conduzia o discurso entre “saca” e “narrativa”. O Conteúdo era também parecido com o que lemos e ouvimos de Capilé, a ideia do Fora do Eixo de uma nova forma de se pensar vivência e trabalho e como o mídia ninja surge como um reflexo dessa dinâmica, em um contexto onde a mídia tradicional, enquanto negócio e, por isso, presa ao “establishment”, perde sua credibilidade.
Pablo se pronunciou. Lembrou da mídia alternativa que se formou no começo da internet no Brasil e das entidades que a compuseram, como o CMI (Centro de Mídia Independente) e colocou na mesa de debate que o Mídia Ninja não inovava em sua transmissão, pois ainda se valia da idéia de um intermediário entre o acontecimento e o espectador e que essa prática já era realizada no começo dos anos noventa.

Talvez agora consiga entender a fala de Graziela, suas “não-ações” e a necessidade do encontro “cara a cara”. Em uma cidade onde a própria mobilidade física é um problema, o papel das redes se perde no espaço virtual e não encara o asfalto. Até porque, o estopim de toda essa discussão não se deu na nuvem, mas nas ruas, quando o preço da passagem aumentou de três para três e vinte. Aqui consigo pegar emprestado a fala do Pablo, filmar as manifestações não garante o entendimento das mesmas, ou seja, a relação espaço físico x virtual precisa “abrir as janelas” para o mundo de calçadas e concreto do real. Não há mais espaço para uma mídia que concentra o veículo em sua mão. Que a foto e o vídeo irão se transmutar, isso não há dúvidas, resta agora refletir uma nova forma do uso dessas ferramentas para irmos além da toupeira Ninja.

tirinha

Para saber mais:

Casco

The Grand Domestic Revolution

CMI

CCJ